30 de junho de 2012

Os Dons do Espírito e o Fruto do Espírito

Reflexões de Dallas Willard sobre o Espírito Santo, extraídas de seu livro "A Grande Omissão":

http://goo.gl/i7a2z

"Uma das grandes tentações que enfrentamos como evangélicos -- e para este fim, incluo aqui a ala da Igreja que às vezes chamamos de renovada ou carismática -- é a idéia de que a personalidade e o coração serão transformados como que por um raio do Espírito. Você pode chamar isso de avivamento ou qualquer outro nome. Haverá um grande estrondo e, de repente, você se verá transformado em todos os aspectos de seu ser. Não será necessário passar por um processo -- o seu objetivo será alcançado de forma passiva e imediata.

Considere agora o seguinte: quando o povo de Israel entrou na Terra Prometida, a primeira cidade com a qual deparou foi Jericó e, como sabemos, os muros de Jericó ruíram. Agora, diga-me uma coisa, quantos muros ruíram na conquista das outras cidades da Terra Prometida? O que os israelitas tiveram de fazer com o restante dessas cidades? Tiveram deconquistá-las, não é?
(...)


Precisamos entender que a formação espiritual é um processo que envolve a transformação da pessoa como um todo, e que, nesse processo, a pessoa deve ser ativa em Cristo."



"Abrindo nossa vida para o Espírito

O segundo lado do triângulo é a interação com o Espírito de Deus dentro de nós e ao nosso redor. Como Paulo diz, viver no Espírito nos permite "andar" no Espírito (Gl 5:25). Essa personalidade onipotente e criativa, o "fortalecedor", o parakletos de João 14, aguarda com toda calma nosso convite para que ele opere em nós, conosco e por nós.

A presença do Espírito Santo pode sempre ser reconhecida pela maneira de ele nos mover em direção ao modo de ser e agir de Jesus (Jo 16:7-15). Sabemos que o Espírito está agindo em nós quando experimentamos em nosso ser interior a doçura celestial e o poder de vida — o amor, a alegria e a paz — que Jesus experimentou.

A vida no Espírito se manifesta, no exterior, de duas maneiras. Os dons do Espírito nos permitem realizar algumas funções específicas — como servir, curar ou liderar o culto —, com efeitos que superam, de forma clara, nossas capacidades. Esses dons cumprem os propósitos de Deus no meio de seu povo, mas não indicam, necessariamente, a condição de nosso coração.

O fruto do Espírito, em contrapartida, é indicador seguro de um caráter transformado. Quando aprendemos a deixar que o Espírito cultive a vida de Jesus dentro de nós, temos atitudes e inclinações mais profundas semelhantes às de Jesus. Paulo confessou: "Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" (Gl 2:19-20). O resultado de Cristo viver em nós por meio do Espírito é fruto: "amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio" (Gl 5:22-23; cf. também Jo 15:8).

Tanto os dons quanto o fruto são o resultado, e não a realidade da presença do Espírito em nossa vida. O que nos transforma à semelhança de Cristo é nossa interação direta e pessoal com Cristo por meio do Espírito. O Espírito torna Cristo presente para nós e nos aproxima de sua semelhança. Ao contemplarmos desse modo "a glória do Senhor [...] estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito" (2Co 3:18).

(...)

Qual é o papel dos dons e do fruto do Espírito na formação espiritual? 


Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio" (Gl 5:22-23). A idéia é a mesma ou intimamente relacionada àquilo que Paulo chama em outra passagem de "fruto da luz |que] consiste em toda bondade, justiça e verdade" (Ef 5:9). Evidentemente, é o mesmo que amor no sentido abrangente da palavra descrito por Paulo em 1 Coríntios 13 e Colossenses 3:14, um tema constante nos ensinamentos de Jesus.

O fruto do Espírito e simplesmente o caráter interior do próprio Cristo concretizado em nós por meio do processo da formação espiritual cristã. É o resultado da formação espiritual. É "Cristo formado em nós". É chamado de "fruto", pois, como o fruto das árvores ou videiras, e conseqüência daquilo que nos tornamos, e não o resultado de um esforço específico para dar frutos. E, desse modo, nos tornamos "frutuosos", pois recebemos a presença do Espírito de Cristo por meio do processo de formação espiritual e agora esse Espírito, interagindo conosco, nos enche de amor, alegria, paz etc.

A medida que o fruto do Espírito aumenta em nós, é evidente que se torna um elemento dinâmico por si mesmo no processo contínuo de formação espiritual. Ser tomado de amor, alegria, paz etc. e ter os recursos ricos para manter e intensificar uma vida repleta de fé e para crescer em todas as dimensões da graça interior e exterior. O fruto do Espírito e a formação espiritual passam a se sustentar mutuamente, à medida que a formação espiritual progride no indivíduo.

Isso também se aplica, de outra forma, à formação espiritual e aos dons do Espírito. Os dons do Espírito são habilidades sobrenaturais específicas distribuídas entre aqueles que constituem o Corpo de Cristo aqui na terra, a fim de que todos os membros possam ser beneficiados por todos esses dons conforme necessário. "Há diferentes formas de atuação, mas é o mesmo Deus quem efetua tudo em todos. A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum" (1 Co 12:6-7). A formação espiritual não tem meios de avançar da forma como Deus determinou se o indivíduo não fizer parte de um corpo de cristãos onde possa receber os benefícios dos dons de outros. Sem os dons, o fruto não pode ser produzido nem mantido.

Os dons do Espírito, por sua vez, só podem ser usados corretamente se aquele que os recebe e serve a outros por meio deles tiver a devida formação interior na semelhança de Cristo. Não somos passivos no processo de receber e servir com os dons do Espírito. Eles devem ser buscados, recebidos e cultivados ativamente. Tudo isso requer uma transformação contínua do ser interior. A formação espiritual lança os alicerces e fornece a estrutura apropriada para o exercício desses dons pelo indivíduo e pelo grupo, e o exercício desses dons pelo indivíduo para o grupo e, dentro do grupo para o indivíduo, é necessário para que a formação espiritual avance da maneira como deve. Os dons, de per si, não têm participação relevante na formação do espírito e do caráter daqueles que o exercitam. E, o que é mais importante, apesar de fazerem parte da formação espiritual, os dons do Espírito não a substituem."


10 de junho de 2012

Religião para Ateus: Instituções

Enquanto muitos cristãos estão combatendo os aspectos institucionais e litúrgicos da fé, os "ateus 2.0", representados pelo filósofo suíço Alain de Botton, "sugere que o secularismo tem muito a aprender com os ritos da fé e com as estratégias que a religião tem usado, desde o princípio dos tempos, para tornar-se indispensável na vida de boa parte da humanidade. Elementos como a arte, a educação, a convivência em comunidade e, pasmem, instituições!

Seguem abaixo excertos do último capítulo e, ao final, links para prosseguir na discussão. Adianto que concordo com James K. A. Smith, ao dizer que "muitas das coisas que Botton exalta na religião estão ausentes da "nossa" versão da religião. Podemos ter algo a aprender com o ateísmo 2.0".


(...) Os pensadores devem aprender a dominar o poder das instituições para que suas ideias tenham alguma chance de obter uma influência extensa no mundo.

Porém, infelizmente, intelectuais seculares sofreram por muito tempo de uma desconfiança temperamental em relação às instituições, enraizada na visão de mundo romântica que coloriu a vida cultural desde o século XIX. O Romantismo nos ensinou a zombar da solenidade e das restrições das instituições, de suas tendências à corrupção e sua tolerância à mediocridade. O ideal do intelectual tem sido aquele de uma espírito livre vivendo além dos limites de qualquer sistema, desdenhoso do dinheiro, isolado das questões práticas e orgulhoso de ser incapaz de ler um balanço patrimonial.

Se a vida interior das pessoas é até hoje mais influenciada por profetas bíblicos que por pensadores seculares, isso se deve em grande parte ao fato de que os últimos têm consistentemente relutado em criar estruturas institucionais por meio das quais sua ideias relacionadas à alma possam ser disseminadas de maneira bem-sucedida para uma audiência maior. As pessoas com interesses em tratar das necessidades da alma secular não têm tido escala, condições estáveis de emprego e capacidade de transmitir suas visões pelos meios de comunicações de massa. Em vez disso, inconstantes profissionais administram individualmente o que, na prática, não passa de micronegócios, enquanto as religiões organizadas infiltram em nossa consciência toda a força e a sofisticação disponíveis ao poder institucional.

(...) 
A grande distinção da religião é que, ao mesmo tempo em que possui um poder coletivo comparável ao das corporações modernas que vendem sabão e purê de batata, lida exatamente com aquelas necessidades interiores que o mundo secular deixa para indivíduos desorganizados e vulneráveis.

O desafio, por conseguinte, é criar -- por meio de um estudo das instituições religiosas -- entidades seculares que possam atender às necessidades do self interior com toda a força e habilidade que as empresas hoje empregam para satisfazer as necessidades do self exterior.

(...)
Uma vez que somos criaturas com corpos -- animais sensíveis e também seres racionais --, só podemos ser influenciados de maneira duradoura por conceitos quando eles vêm a nós por meio de uma variedade de canais. De uma maneira que as religiões parecem ser as únicas a compreender devidamente, não podemos ser marcados por ideias a menos que, além de serem transmitidas por livros, palestras e jornais, também repercutam no que vestimos, comemos, cantamos e usamos para decorar nossas casas e tomar banho.

(...)
As religiões demonstraram capacidades comparáveis no campo espiritual, conseguindo, pelo uso do ritual, resgatar momentos e sentimentos que em outras circunstâncias poderiam ter sido negligenciados ou esquecidos, mas que -- graças a uma visão religiosa de commoditização -- adquiriram nomes dignificantes e datas fixas em calendários.

(...)
As religiões trazem escala, consistência e força externa àquilo que de outra forma poderia permanecer para sempre como um evento pequeno, aleatório e privado. Elas dão substância às nossas dimensões interiores -- aquelas partes de nós que o Romantismo prefere deixas desregulamentadas, pelo medo de obstruir nossas chances de autenticidade. 

(...)
Precisamos de instituições para estimular e proteger aquelas emoções que estamos inclinados a cultivar, mas às quais, sem uma estrutura de apoio e um sistema de lembretes ativos, não dedicamos tempo porque somos distraídos e indisciplinados demais.

O mundo secular, romântico, vê na commoditização apenas perda de diversidade, qualidade e espontaneidade. No entanto, o processo permite que aspectos frágeis e raros, porém importantes, possam ser identificados com mais facilidade e compartilhados de maneira confiável. Aqueles de nós que não têm religião nem crenças sobrenaturais ainda precisam de encontros regulares e ritualizados com conceitos como amizade, comunidade, gratidão e transcendência. Não podemos depender da nossa capacidade de chegar a eles sozinhos. Precisamos de instituições que nos lembrem de que necessitamos deles e que os apresentem em embalagens atraentes -- assegurando, assim, o fortalecimento dos lados mais esquecidos e não autoconscientes de nossa alma.

(...)

A questão que enfrentamos agora é como aliar as diversas boas ideias, que hoje dormem nos recessos da vida intelectual, a esses instrumentos organizacionais, muitos deles religiosos na origem, que têm chances maiores de dar a elas o impacto devido no mundo.

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IHU.Unisinos: O ateísmo pastoral de Alain de Botton
Fors Clavigera: We're All Atheists Now
Video TED com legendas: www.ted.com/talks/view/lang///id/1327

3 de junho de 2012

Hábitos: O Fulcro do Amor

A antropologia que temos esboçado tem enfatizado que somos fundamentalmente criaturas de desejo ou amor e que nosso amor já é sempre orientado para uma visão última da boa vida, um quadro do reino que incorpora uma imagem particular de florescimento humano. Sugerimos ainda que essas imagens -- estes ícones afetivos da boa vida -- entram em nossos ossos e em nossos corações e, assim, moldam nosso caráter por direcionar o nosso desejo a um fim particular. Mas isso levanta questões importantes: Como isso acontece? Como é que nosso amor se destina a direções diferentes? Isso acontece por algum tipo de magia ou alquimia? Isso acontece pela disseminação de idéias e proposições que convencem-nos a perseguir essa visão? Quais são os mecanismos pelos quais visões particulares da boa vida seriam difundidas em nossos corações de tal forma que elas pudessem motivar e governar um modo de vida (decisões, ações, ocupações, relacionamentos)?

Um desejo por e uma orientação para uma visão particular da boa vida (o reino) tornam-se operativos em nós (motivando ações, decisões, etc), tornando-se parte integrante do tecido de nossas disposições nossas tendências precognitivas para agir de determinadas formas e em direção a certos fins. Filósofos como Aristóteles, Tomás de Aquino, e MacIntyre descrevem tais  disposições como "hábitos". Os bons hábitos, por exemplo, são "virtudes", ao passo que os maus hábitos são "vícios". Esses hábitos constituem uma espécie de "segunda natureza": enquanto eles são aprendidos (e assim não instintos biológicos simplesmente ), eles podem se tornar tão intrincadamente tecidos na fibra do nosso ser que eles funcionam como se fossem naturais ou biológicos. Eles representam nossas tendências padrão e nossas disposições quase-automáticas para agir de certas maneiras, a perseguir determinados bens, a valorizar certas coisas, a estimar certas relações, e assim por diante. Assim, a pessoa virtuosa é alguém que tem uma disposição quase automática para fazer a coisa certa "sem pensar". Nossos hábitos inclinam-nos a agir de determinadas maneiras, sem ter que nos lançar em um modo de reflexão, pois em grande parte somos movidos por um motor que ronrona sob o capô com pouca atenção de nós. Este motor precognitivo é o produto de um longo desenvolvimento e formação - é feito, não algum tipo de "fiação dura" - mas funciona de uma maneira que não exige a nossa reflexão e cognição.

Nossos hábitos, portanto, constituem o fulcro do nosso desejo: eles são a dobradiça que "giram" nosso coração, nosso amor, de tal forma que este é predisposto a ser destinado em certas direções. Em sua maior parte isso ocorre sob o radar, por assim dizer. Nós não acordamos a cada dia pensando acerca de uma visão da boa vida e, em seguida, de forma consciente, reflexivamente tomamos decisões distintas sobre "o que vamos fazer hoje" como penúltimos meios para nossos fins últimos. Essa seria uma manhã bastante estranha, como acordando, mas ainda sendo uma espécie de sonho cartesiano, onde estamos constantemente funcionando como máquinas cognitivas (não é uma grande maneira de começar o dia!). Em vez disso, porque na maioria das vezes somos animais que desejam, imaginitivos, não-cognitivos, o nosso desejo pelo reino está inscrito em nossas disposições e hábitos e funções muito além da nossa reflexão consciente. Então, quando dizemos que ser humano é amar, desejar o reino, estamos sugerindo que essa visão da boa vida do reino torna-se inscrita e difundida nos nossos hábitos e disposições e, portanto, tecida em nossa (segunda) natureza precognitiva .


James K. A. Smith's, Desiring the Kingdom: Worship, Worldview, and Cultural Formation (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2009). pp. 55-57.