11 de dezembro de 2012

Cristo e Cultura, Igreja e Criação

Não devemos desconectar a Grande Comissão do mandato cultural.

Cristo e Cultura: uma releitura, 

resenha de James K. A. Smith*

14/10/2008



É irônico que um livro de um teólogo liberal tenha inundado tão completamente o auto-entendimento evangélico contemporâneo. No entanto, 50 anos após sua publicação, Cristo e Cultura, de H. Richard Niebuhr, continua a ser um clássico no cânon evangélico. Mas este padrão recentemente enfrentou fortes desafios de dentro da dobra (within the fold), incluindo o incisivo Rethinking Christ and Culture de Craig Carter, e agora Cristo e Cultura: uma releitura, de D. A. Carson. Carson corretamente procura fazer uma releitura das categorias de Niebuhr, mantendo seus pés no fogo bíblico. Como teólogo bíblico, Carson está preocupado com o fato de que as categorias de Niebuhr assumiram uma vida própria - que os cristãos agora adotam seus modelos sem considerar como (ou se) eles crescem fora da sabedoria bíblica.




Carson segue uma estratégia exibida na recente discussão acerca da Expiação, em que alguns estudiosos têm combatido o entendimento estabelecido de que os modelos da Expiação sejam mutuamente exclusivos. Assim como o Novo Testamento celebra entendimentos complementares da obra de Cristo na cruz, assim também, Carson sugere, ocorre com modelos de “Cristo e Cultura”. Devemos parar de pensar que seja uma questão de selecionar e escolher, e considerar um quadro maior que integra diferentes abordagens.


Carson também está justamente preocupado em separar as abordagens de "Cristo e cultura" do provincianismo americano e europeu. Como ele ironicamente diz, "Se Abraham Kuyper tivesse crescido sob as condições dos campos de morte do Camboja, suspeito que sua visão da relação entre o cristianismo e cultura seria significativamente modificada." Assim, Carson considera os setores da maior parte do mundo onde os cristãos sofrem perseguição política e ambientes que estão distantes da democracia ocidental, sugerindo uma reflexão mais global de Cristo e Cultura.


Mas eu quero focar no projeto central de Carson: enraizar uma compreensão cristã do engajamento cultural na narrativa das Escrituras. Seu ponto persistente é que o pensamento cristão sobre a cultura deve ser explicitamente e positivamente informado pelos "grandes pontos decisivos na história da salvação." Esta abordagem destaca o fato de que Jesus notavelmente faz poucas aparições no entendimento cristão da cultura; em vez disso, nós precipuamente fazemos apelos significativos à criação, à justiça, e assim por diante. Como Carson observa: "Embora fiéis que se julgam pertencer a Jesus, é difícil ver como tal lealdade seja uma marca do pensamento cristão se o Jesus assim tão invocado é tão domesticado e seletivamente construído que ele tem pouca relação com a Bíblia". Na verdade, estamos realmente lidando com uma consideração cristã da cultura, se a Cruz nunca aparece? Em nome de abordagens "cristãs" da cultura, observa Carson, temos um monte de modelos criacionais, mas pouquíssimas abordagens cruciformes.


Este desejo de enraizar o pensamento cristão acerca da cultura na grande narrativa da Escritura é louvável. Infelizmente, eu acho que é também onde o livro fraqueja porque o sumário de Carson da história bíblica é, francamente, incompleto. Por exemplo, enquanto ele enfatiza a doutrina da criação e que "Deus fez tudo," em nenhum lugar ele discute o que tem sido comumente descrito como o "mandato cultural" (Gn 1:27-29) -- o chamado criacional da humanidade de cultivar as possibilidades latentes dentro da criação através do contínuo trabalho cultural. Esta tarefa de fazer humano é precisamente a forma como portamos a imagem de Deus no mundo (como "sub-criadores", nas palavras de Tolkien). Em vez disso, Carson tende a tratar a cultura como um dado e não oferece uma teologia da cultura que mostra como o trabalho de "fazer humano" está enraizado na própria criação. Para Carson, cultura sempre parece ser um sustantivo (algo "lá fora") em vez de um verbo (algo que fazemos).


Também fica claro no levantamento de Carson da história da redenção que o que está sendo resgatado são seres humanos: esta é a "história da salvação". Porque Carson entende pecado restritivamente, como transgressão moral pessoal e idolatria, ele entende a redenção em termos igualmente estreitos como a salvação de pessoas humanas. Porque as instituições, sistemas e estruturas estão ausentes da consideração de Carson da criação, eles também não aparecem no radar da queda ou redenção. Somos "nós" que caímos, e "nós" que somos salvos.


Portanto, não é surpresa que vemos a mesma bifurcação entre a redenção e o trabalho "cultural" no entendimento de Carson da missão da igreja -- ou, como ele coloca "que a igreja como igreja tem o mandato de fazer". E o que é isso? Bem, isso é coisa de igreja: "Quando a igreja se reúne no Novo Testamento", observa ele, é para louvar e cantar, para ensinar e aprender, para observar as ordenanças do batismo e da Ceia do Senhor, e para exercitar a disciplina -- tudo com vista a equipar os santos para o evangelismo. (Nós também encontramos a igreja primitiva participando na redistribuição da riqueza, mas em todo caso....) Carson deixa claro que a obrigação cristã central é ministério e evangelismo: quando os cristãos fazem os ministérios de compaixão e justiça serem centrais "eles marginalizam as suas responsabilidades como membros da Igreja de Jesus Cristo, a Igreja que vive e morre pela Grande Comissão". Enquanto os cristãos devem se envolver em um pouco de engajamento cultural ao lado, eles são chamados a "antes de tudo" ser "cristãos do evangelho, profundamente engajados em suas igrejas locais, extraordinariamente disciplinados em sua própria leitura da Bíblia e no evangelismo".


Assim, Carson conclui que "a única organização humana que continua na eternidade é a igreja". Isso confirma a escatologia estreita sugerida no início do livro, quando ele afirma que "o que deve ser temido e evitado a todo custo é a segunda morte" (Ap. 20-22). Para Carson, as atuais relações entre Cristo e cultura "não têm o estatuto final, eles devem ser avaliadas à luz da eternidade". Tem-se a sensação de que a eternidade de Carson carece de instituições culturais -- uma eternidade sem comércio ou política, arte ou atletismo. (Embora ele ocasionalmente aponte seu chapéu para outras áreas, a análise de Carson praticamente reduz a cultura à política.) Tudo o que restará é "a igreja" (embora não seja claro o que a igreja vai fazer uma vez que, de acordo com Carson, "a igreja vive e morre pela Grande Comissão"). Tal visão achatada do nosso futuro redimido é o correlato de uma compreensão atrofiada da criação.


O louvável projeto de Carson de redirecionar as conversas sobre "Cristo e cultura" para as riquezas da narrativa bíblica é uma oportunidade perdida. A partir de uma compreensão seletiva e estreita da criação, ele perde a oportunidade de articular uma teologia bíblica da cultura como uma tarefa de criação, e suas abordagens decorrentes do pecado, da redenção e do destino final do mundo são igualmente circunscritas.


Na verdade, o que Carson perde é uma oportunidade de finalmente desfazer o nosso mau hábito de desconectar o mandato cultural da Grande Comissão. Mesmo aqueles que afirmam ambos muitas vezes os vêem como não relacionados, não conseguindo discernir sua conexão íntima. Mas o que é o o evangelho senão o chamado e convite de Deus para sermos restaurados e renovados como portadores apropriados da imagem de Deus -- que carregam sua imagem por desdobrar o potencial da criação em cultura corretamente ordenada? Ser portadores da imagem de Deus é um chamado, uma vocação e uma tarefa, e não uma propriedade estática do ser humano (remeto o leitor para a brilhante abordagem de Richard Middleton disso em The Liberating Image). E Cristo, como o segundo Adão, mostrou-nos como se parece fazer isso: em um mundo caído e quebrado, a forma de tal vocação é cruciforme; ser agentes culturais do Deus crucificado não é um projeto de transformação triunfal, mas de testemunho sofredor.



James K. A. Smith é Professor de Filosofia no Calvin College em Grand Rapids, Michigan, onde ensina no departamento de estudos congregacionais e ministeriais.

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